Não sei bem o que é a
sabedoria popular, mas ela é impressionante. Ela se manifesta de diversas formas, inclusive através dos
ditados populares. Eles existem aos montes e servem para as mais variadas situações. Não importa o que esteja acontecendo, sempre tem um ditadozinho esperando para ser citado e, quase sempre, confirmado.
Alguns são específicos. Servem apenas para uma situação em particular. Outros são tão abrangentes que quase sempre são usados. É o caso de "rapadura é doce mas não é mole". Basta que a situação em questão seja difícil, mas traga uma boa recompensa, para que esteja apta a servir de palco para esse ditado brilhar. Cá para mim, o melhor palco para esse ditado é a vida de mãe. É uma vida tão, tão doce... mas não é mole.
Na verdade, quando digo que não é mole, nem estou considerando o esforço físico: pega no colo, dá banho, troca a roupa, dá a comida, escova os dentes, faz comida, pentei o cabelo, coloca pra dormir, lê histórias, relê histórias, faz a mamadeira, lava a mamadeira, esteriliza a mamadeira, guarda a mamadeira, compra fruta, faz suco, faz mingau, troca a fralda... ufa! Melhor parar a listagem por aqui. O esforço físico existe, mas a dificuldade de que falo está relacionada à responsabilidade pela educação de um filho. [Óbvio que acaba se misturando com os esforços físicos.]
Quer dizer, a responsabilidade de ensinar ao filho a importância de se escovar os dentes é algo que também inclui o fato de pegar a escova, colocar o creme dental e ir você mesma, durante os primeiros anos, escovar dente por dente do seu filho, incluindo a língua. Todos os dias, 2 a 3 vezes [ou mais]. E ainda tem o fio dental. Muitas vezes ele vai chorar, dizer que não quer, mas o trabalho precisa ser feito para que, mais tarde, você possa se orgulhar do lindo sorriso do seu filho e para que ele não sofra tendo que passar pelas "torturas" na cadeira do dentista. E é aqui que o dilema dificuldade X recompensa toma outra dimensão e se transforma em identificação X papel de mãe.
Quando um filho nasce, uma das coisas mais importantes que deve ocorrer na relação mãe-bebê é a
identificação. É através dela que a gente "adivinha" que o bebê está com fome, com sono, com frio ou com calor. A gente fica tão conectada àquele ser que consegue "sentir o que ele sente", imaginar o que ele quer/precisa. Graças a ela, podemos suprir o nosso bebê de tudo o que ele precisa e a cada vez que isso acontece também nós, nos sentimos supridas, confortadas. Pode-se dizer que é através da identificação que a mulher se coloca no lugar do filho para, então, se colocar no lugar de mãe.
Mas nem tudo são flores... nós temos responsabilidades para com esta criança que devem ser cumpridas, ainda que isso signifique, muitas e muitas vezes, agir no sentido oposto ao que o filho deseja. Em outras palavras, apesar de saber o que seu filho
deseja e ser capaz de "sentir" o desejo junto com ele, a mãe tem que cumprir o seu papel.
Na minha curta carreira de mãe, já passei inúmeras vezes por esta situação e a primeira vez que me dei conta [por experiência própria] desse dilema implícito de toda mãe foi quando perguntei ao pediatra se termômetros que mediam a febre pela testa (sem nem ao menos ter necessidade de tocar a pele do bebê) eram seguros. Ele me olhou parecendo não ter entendido bem a pergunta: "Mas por que está me perguntando isso? Use os termômetros de pôr embaixo do braço mesmo. Eles são bons". Eu respondi: "Mas é que o Dudu chora muito e não me deixa colocar de jeito nenhum. Ele se mexe bastante". Lembro bem que o que ele disse depois era tão óbvio que me fez sentir uma boba: "É só colocar o termômetro embaixo do braço dele e segurá-lo por alguns segundos. Ele tem 1 ano. Você é muito mais forte do que ele. Não machuca nada. Na verdade, não tem nenhum efeito direto ou colateral a não ser o fato de te informar a temperatura do seu filho, o que é de grande importância".
Tão simples. Ele tinha toda razão! Mas por que me custava tanto? Resposta: porque naquele momento eu estava inteiramente identificada com meu filho e não conseguia sair desse lugar e ocupar o lugar de mãe, com o dever que isso implica - neste caso, avaliar a temperatura do meu filho. Eu não sei o que ele sentia quando eu tentava colocar o termômetro, mas, fosse o que fosse, eu sentia o mesmo. E não conseguia sair dali. E isso que é duro: eu tenho que sair e fazer o que se espera, exercer esta parte que me cabe como mãe.
[Estou falando aqui de uma situação em que facilmente se percebe essa encruzilhada no caminho do
ser mãe. Quantas e quantas outras situações tão sutis passam completamente despercebidas... Lembro de uma passagem de um
livro que li: uma mãe diz ao psicólogo estar preocupada com o fato do filho só fazer coco no
box do banheiro. A única intervenção do psicólogo foi perguntar: "E você deixa?". Resultado: Nunca mais a criança fez coco no
box.]
É por isso que é tão difícil, muitas vezes, dizer não ao filho ou manter uma decisão diante do choro inconsolável dele. Aos olhos dos outros, mãe que cede à birra do filho não tem autoridade, é boba e todas as outras críticas tão comuns - que todos sabem quais são, afinal, quem nunca criticou uma mãe nessa situação que atire a primeira pedra. O que não se sabe é da identificação da mãe com o filho e dos motivos dela.
Encontrar o equilíbrio entre a identificação com o filho e o seu papel de mãe é um grande desafio que a gente trava com a gente mesma sem nem ao menos saber. Mas não é o único. Também pode acontecer o exato oposto do que já foi dito aqui e a insistência em agir supostamente segundo o "papel de mãe" seja só uma desculpa para perpetuar antigas práticas familiares, para obter gozo do exercício de um poder que se deseja sentir ou até uma vingança velada.
Explico melhor: criança não pode fazer muita coisa porque é perigoso ou impróprio para a sua idade e cabe à mãe zelar para que ela não o faça. Por isso, mãe também tem que saber dizer não. Essa é a saída da identificação tão difícil de que falei até agora. Ocorre que, muitas vezes, mães dizem
não para seus filhos, e o mantém custe o que custar, sem que realmente o
não seja necessário.
"Não pode sair da mesa até que coma todo o peixe!" - é a prática familiar que a mãe vivenciou e que repete com o filho, sem se questionar sobre a conveniência atual dela. Será mesmo que o filho
precisa comer
todo o
peixe? Sempre? Esse é um exemplo simples de como a função de mãe é usada para impor regras passadas de geração em geração, sem que questionamentos sejam feitos. Por que meu filho não pode ter o direito de não querer comer essa ou aquela comida hoje ou amanhã, de não gostar de determinada fruta? Ainda mais considerando que todo mundo não tem vontade de comer peixe alguns dias ou não gosta mesmo de determinada fruta...
Usando este mesmo exemplo, que bela maneira de exercer poder sobre outra pessoa, ainda que essa pessoa seja uma criança indefesa?! Assim é que se pode "compensar" a incapacidade de gerir pessoas no trabalho ou a passividade diante do chefe, de outros amigos, de outras situações. O filho não tem alternativa a não ser se submeter. E nós [pais] nos regozijamos pela sensação de total poder. "Viram como ele me obedece?!"
Há ainda ocasiões em que ficamos realmente irritadas com algum comportamento do filho e obrigá-lo a comer todo o peixe para só então permitir que ele se retire da mesa é uma maneira de nos vingarmos inconscientemente. Quem porá em cheque o nobre dever da mãe zelosa que quer que o filho coma uma comida saudável? Nem a própria mãe! Por isso, a "vingança" nem chega a se tornar consciente e assume ares de "papel de mãe".
Resumindo a coisa toda (se é que é possível), é duro o papel de mãe: quando ele se faz necessário, é difícil exercê-lo face a identificação; quando conseguimos agir segundo ele, é importante ponderar sobre sua real necessidade/conveniência. Vida de mãe é mesmo como rapadura...
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